a fantasia das pequenas coisas
- melody erlea

- há 5 dias
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em outubro de 2016 eu escrevi o seguinte:

pensamentos desencontrados após ler "mr. penumbra's 24-hour bookstore"
às vezes a vida me parece tão ela mesma. tão algo que eu já conheci e vivi e entendi e tão algo que não muda. às vezes as coisas todas são tão normais, tão costumário, tão assim o que a gente já sabe que é.
cadê aquelas portas que a gente abre e descobre um mundo desconhecido, que esteve sempre lá bem perto só que a gente apenas nunca parou pra olhar. cadê as pequenas descobertas mágicas do dia-a-dia? cadê aquele feeling de aventura, de algo incrível esperando, de pequenas decisões que podem mudar o rumo da nossa vida?
por aqui o que tá rolando é muito cansaço, a tristeza de trabalhar em lugares que não realmente valorizam meus esforços, a certeza de ser descartável, os pequenos perrengues diários, as mesmas pessoas mesquinhas simplórias e escrotas com quem eu tenho que lidar, quer dizer, cadê as pessoas que a gente vai conhecendo e com elas vai construindo uma história nova? e sim, eu sei que a vida o tempo todo está cheia de coisas maravilhosas, eu tenho, também pessoas formidáveis ao meu redor, eu tenho amor (e quanta gente acha - e quantas vezes eu achei - que isso é a solução de tudo, mas não é, é só uma força a mais, é só uma companhia pelos caminhos tortos e às vezes tão difíceis desse mundo, mas não é a solução), eu aprendo coisas novas todo dia e me permito (ou tento) conhecer a fundo tudo aquilo que me é permitido e me oferecido.
mas mesmo assim
não tá uma atmosfera de mesmice?
não é tudo tão igual sempre?
cadê a aventura?
cadê descobrir mundos novos? cadê descobrir coisas estranhas virando a esquina de um caminho comum?
isso só tem em livro?
quantos livros eu vou ter que ler até morrer pra me sentir menos a mesma, menos vivendo uma vida tão sem reviravoltas, tão com os mesmos conflitos sempre? eu vou ter que passar o resto da vida lendo incessantemente pra me livrar dessa repetição, dessa vida uniforme, dessa coisa de viver os dias um após o outro tão previsivelmente, tão do mesmo jeito......
eu queria um pouco de fantasia, um pouco de conhecer outros mundos, mas o que eu tenho na real é desemprego, um leve desespero com a vida, e muita internet.
e esses dias, essas últimas semanas, lembrei bastante de ter escrito isso. eu lembro que quando escrevi isso, logo após ler mr. penumbra's 24 hour bookstore, eu tinha acabado de comprar meu primeiro kindle e descobrir o maravilhoso mundo da pirataria literária. eu li algo em torno de dois ou três livros por mês naquele ano, e descobri autores novos e maravilhosos de fantasia, entre eles robin sloan, autor de mr. penumbra. li neil gaiman, li murakami, e li vários autores menos famosos de fantasia. a grande maioria dos livros que li em 2016 eram justamente sobre essa intersecção impossível da vida real com o mundo fantástico - a tal da porta que você abre e descobre um mundo desconhecido e mágico.

eu sempre gostei de literatura fantástica, desde os 11 anos quando li bioy casares pela primeira vez, mas 2016 foi um ano em que eu senti que minha sanidade só sobreviveu graças a esses livros. e eu ardia de vontade de viver uma aventura na vida real. mas, pensando hoje, mais precisamente eu queria consumir e ser consumida por essas narrativas fantásticas para esquecer um pouco minha existência monótona e burocrática. eu sempre gostei do escape, mas naquele ano em específico eu precisava do escape.
essa necessidade aguda por narrativas fantásticas parece ter tido seu ápice em 2016 mesmo. nem antes nem depois eu senti que a minha existência dependia daquele escape diário - embora eu sempre tenha sido apegada ao escape, à fantasia, à literatura. a verdade é que desde 2016 eu senti menos o ardor da fantasia - mesmo quando voltei, tantas e tantas vezes, à literatura fantástica, era menos latente, era menos física a relação do meu corpo com as histórias. eu tava suspendendo menos a descrença, eu tava entrando menos na história - eu estava lendo, e não vivendo.
foi do fim do ano passado para cá que eu encontrei, em momentos efêmeros, essa mesma sensação de vida que encontra o fantástico: começou em dezembro do ano passado, quando comecei a ler house of leaves, do mark danielewski, em que literalmente uma porta dentro de uma casa se desdobra em mundos obscuros, misteriosos, perigosos. mas só tomei consciência dessa sensação dentro de mim recentemente, em novembro, ao ler white tears, do hari kunzru, no mesmo período em que assisti a absurda série the chair company, na hbo.
em white tears, passado, presente, cultura e apropriação se mesclam numa busca doentia por um vinil de blues aparentemente amaldiçoado da década de 1920. em the chair company, a realidade tediosa do trabalho em escritório se torna uma busca incessante por uma empresa fantasma que fabrica cadeiras defeituosas num esquema conspiratório que parece se estender por todos os aspectos da vida do protagonista. nas duas obras, uma questão latente: aquilo tudo está mesmo acontecendo, ou são os personagens envolvidos na história levemente desequilibrados? é nesse entruncamento entre realidade palpável e realidades alternativas que tá aquele gostinho por aventura que eu tanto procurava em 2016.
não à toa eu tenho pensado nesse meu post de 2016: e eu reencontro o gostinho agora, quase 10 anos depois. mas ele vem diferente - mais maduro, será? menos da ânsia da juventude presente, mais da calmaria de ter quase 40 anos. menos da angústia de um emprego péssimo (ou de não ter um emprego), mais da tranquilidade de uma carreira estável e um salário agradável. e também um certo alívio ao entender que o que eu antes enxergava como mesmice hoje eu entendo como conforto - ter uma casinha pra onde voltar todo dia. ter meu dinheirinho todo mês. ter ao meu lado somente as pessoas que eu quero e que me querem.
mas, especialmente, a sabedoria de que há fantasia, sim, no dia-a-dia: reencontros com pessoas inimagináveis, a sensação de aventura que pode existir num fim de semana, as redescobertas de mim mesma cada vez que mergulho no meu guarda-roupa, e as portinhas do mundo que a gente abre pra viver aventuras inesperadas: novas pessoas, músicas descobertas e redescobertas, lugares e cervejas e encontros e reencontros. é claro que tem o trabalho, tem a rotina, tem o trânsito, tem as pessoas que a gente preferia enterrar bem fundo no chão. mas é justamente aí que mora a contradição: não tem aventura nem fantasia se, de vez em quando, não houver monotonia e rotina. é no contraste que a gente se descobre vivendo algo fantástico.
é também no contraste que a gente se enxerga são: tanto em white tears quanto na série the chair company a gente passa a duvidar da sanidade dos personagens quando percebe que a vida real desaparece e só sobra a perseguição obsessiva pelo elemento fantástico. o emprego, a família, os amigos, parece que tudo desaparece ou vira pano de fundo, palco pra uma loucura que cresce exponencialmente sem os obstáculos da vida comum.
até porque é bem aí, no esforço diário sisífico, que a gente encontra, sem querer, tropeçando pelas ruas, a magia dos dias de uma vida finita. uma mensagem que chega repentinamente e muda o nosso ano inteiro, duas mãos que se encontram e se entrelaçam quando a gente menos esperava, uma vida que se abre ao inesperado num encontro quase impossível. o niilismo se perde nos significados que vão surgindo dessa coisa louca que é a vida.
e, sem muita conclusão ou moral, encerro esse singelo post com essa tirinha que apareceu pra mim no instagram bem enquanto eu escrevia esse texto, e que me pareceu um bom desfecho pra essas ideias desencontradas todas:














engraçado que tava ouvindo "exatamente igual" de pabllo vittar quando comecei a ler o post, ri bastante com a coincidência de temas rsrs