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margaret atwood e a perversão nas amizades femininas

  • Foto do escritor: melody erlea
    melody erlea
  • 26 de ago.
  • 6 min de leitura

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a primeira vez que eu li margaret atwood, não foi um livro. na época do livejournal havia uma página colaborativa em que pessoas postavam trechos e citações marcantes de livros diversos, sempre literatura. o idioma de comunicação era sempre o inglês, mesmo entre os colaboradores de outros países e falantes de outros idiomas. todas as citações eram em inglês, a maioria de literatura escrita originalmente em inglês, às vezes uma ou outra tradução de livros de lugares diversos.


foi nessa página que eu conheci jonathan safran-foer e seus dois livros que moldaram meus pensamentos por alguns bons anos da juventude, everything is illuminated e extremely loud incredibly close. foi também nessa página que conheci nicole krauss, esposa do safran-foer, e seu livro history of love que atingiu partes do meu cérebro e da minha vida que eu nem sabia existir. e vários outros autores e livros que me apresentaram a um novo mundo da literatura em língua inglesa. inclusive a margaret atwood.


a primeira coisa que eu li da atwood foi um trecho do livro cat's eye, nessa página do livejournal.


“When I am lonely for boys it’s their bodies I miss. I study their hands lifting the cigarettes in the darkness of the movie theaters, the slope of a shoulder, the angle of a hip. Looking at them sideways, I examine them in different lights. My love for them is visual: that is the part of them I would like to possess. Don’t move, I think. Stay like that, let me have that.”


when i am lonely for boys it's their bodies i miss. a primeira frase que eu li de uma das minhas escritoras favoritas. e, na época, nos idos anos 2000, eu mesma, jovem de tudo, perdida em tentativas de escrever sobre minhas experiências românticas e sexuais, eu tentando achar em mim mesma um quê de ana cristina (a audácia!), eu pensando em corpos e beijos e paixões... eu inteirinha pronta pra esse exato trecho de margaret atwood.


passei alguns anos procurando pelo livro. cat's eye. numa era pré-kindle, em que a procura por livros se dava majoritariamente de maneira física: em sebos ou em mega livrarias, tão comuns na época. foi na seção de livros estrangeiros em língua inglesa da livraria cultura do conjunto nacional que eu e margaret finalmente nos encontramos: não achei cat's eye, mas achei handmaid's tale e a trilogia year of the flood. eu nunca mais fui a mesma depois de ler esses livros, e daí por diante eu visitava aquela prateleira de literatura em inglês semanalmente, procurando desesperadamente por margaret atwood. por cat's eye. eu queria ler o livro da onde saiu aquele trecho que descrevia tão bem a admiração juvenil que eu tinha pela presença masculina (descrição essa que só foi matched, nessa mesma época, pelas letras da amy winehouse, que exerceram sobre mim o mesmo encanto das palavras de atwood).



quando eu finalmente, anos depois, pirateei uma versão de cat's eye para o kindle, eu entendi que a margaret atwood tinha uma percepção sobre a experiência feminina que ia muito além de admirar meninos e querer ser envolta em corpos masculinos. atwood tem uma visão do crescer sendo menina - sendo mulher - permeada por um assunto que, hoje em dia, é praticamente tabu: os conflitos e as perversões das amizades femininas. cat's eye, eu me surpreendi em descobrir, não era sobre uma menina descobrindo sua atração por homens. era sobre uma menina completamente perdida em amizades absolutamente tóxicas com outras meninas. era sobre a maldade inerente das meninas, era sobre o veneno feminino cujo alvo é, necessariamente, outra mulher. era sobre ser identificada como a mais frágil num grupo de mulheres e ser, por anos a fio, destinada a sofrer bullying pelo seu grupo de amigas, sem nunca compreender por que exatamente você é o alvo. sem poder comunicar a ninguém a situação, porque a consequência seria sofrer ainda mais nas mãos das amigas.


margaret atwood faz o que nenhuma outra autora considerada feminista tem a coragem de fazer: expor a toxicidade, a perfídia, a maldade que existe entre mulheres. expor a realidade por trás da suposta sororidade de amizades femininas que duram uma vida inteira. expor que não existe feminismo que nos salve da aterrorizante natureza humana.


e, no caso, de atwood, esse retrato dos desamores femininos - dentro de amizades próximas, dentro do que, para qualquer pessoa de fora do grupo, seria descrito como uma irmandade - não era sobre competição, como a narrativa feminista atual gosta de nos fazer acreditar. não era pela atenção de meninos, não era para ser considerada a mais bonita, ou a mais inteligente, não era para concorrer a uma posição de preferência, seja acadêmica ou profissional ou em relacionamentos. atwood descreve uma animosidade feminina que exista por existir, intrínseca ao ser humano e à natureza de algumas meninas. ela desconstrói a ideia - errônea, enganosa - de que mulheres são sempre um lugar seguro para outras mulheres. ela destrói a falácia de que a organização patriarcal da sociedade é a única responsável por separar mulheres. ela mostra que existe algo inato em certas meninas, que nasce não de uma construção social mas da própria natureza humana, que é cruel; que se alimenta da exploração das fraquezas de outra menina.


vira e mexe eu vejo pela internet conteúdos satirizando aquele tipo de menina (hétero, feminina) que prefere andar com os meninos. que se dá melhor com as amizades masculinas do que as femininas. essa personagem é descrita como "pick me", como "nooossa como ela é diferentona", como a menina "que não é como as outras" - sempre de maneira irônica. como se essa rejeição dos grupos de amizade femininos tivesse o único objetivo de chamar a atenção do sexo oposto. mas atwood compreende: às vezes o lugar mais seguro para uma menina é, realmente, um grupo de meninos. as amizades masculinas são menos tortas, requerem menos jogos, permitem mais honestidade em mostrar quem somos. a maldade masculina é mais clara, mais simples, mais fácil de combater. a maldade feminina? essa é inexplicável, indescritível, o tipo de coisa que a gente vive em silêncio, com vergonha, sem saber sequer explicar para um adulto, para nossa mãe, nossa professora, para uma outra amiga. ser o alvo da maldade feminina é se encolher num casulo de insegurança, confusão, tristeza, e ao mesmo tempo fingir força, fingir costume. a pior coisa que um menino faz pra atingir uma menina é chamar de feia, de baranga. dói, mas é um insulto simples. a gente cresce e aprende a se afastar da ideia juvenil masculina de beleza. já as armas femininas para diminuir a alma de outra menina são muito mais sutis, muito mais ardilosas. meninas enxergam fraquezas e as exploram até transformar seu alvo numa casca vazia, sem voz, sem personalidade, sem ser.


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e eu não sei se atwood passou por isso, ou só observou profundamente isso acontecendo ao seu redor, mas a real é que ela é a única que escreve sobre isso. eu reencontrei essa narrativa, também, em robber bride e, mais recentemente, em lady oracle, minha leitura mais recente de atwood. e não é que atwood enxergue as mulheres apenas como essa possível ameaça à sanidade de outras meninas - ela tem inúmeras outras narrativas que compreendem a complexidade dessas relações, que propõe mulheres, também, como força coletiva: handmaid's tale, por exemplo.


mas a literatura de atwood não se basta em conceitos simplificados politizados e militantes, sejam eles da época que for (ela escreve desde a década de 1970 e já se esquivou de várias tentativas de ser classificada como autora feminista, seja qual for a concepção de feminismo ao longo das décadas): margaret é uma profunda observadora das dinâmicas sociais em menor e maior escala, e escreve seres humanos como são - complexos, múltiplos, nunca totalmente bons ou totalmente maus, nunca totalmente moldados por seu contexto social e nunca totalmente levados pela sua própria natureza instintiva e caótica, mas por algo maior, quase indescritível logicamente por existir apenas nos espaços vazios entre um ser humano e outro. as pessoas de atwood são sempre mediadas por si mesmas e suas interações com os outros, sejam esses outros outras pessoas, contextos sociais e políticos, momentos históricos ou nossa própria autopercepção que muda e se adapta para enfrentar os mais diversos conflitos - inclusive o conflito da toxicidade feminina que existe, natural e profundamente, de maneira separada e independente de qualquer discurso feminista.



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