a forma shandiana: brás cubas tropeçando em lawrence sterne
- melody erlea

- 16 de set.
- 4 min de leitura

talvez eu seja mesmo muito bobinha e bem menos nerd do que eu sempre achei que fosse, mas não é que em pleno 2025, ao explorar o material de um curso sobre agnes varda, encontro um ensaio de susan sontag sobre machado de assis (e essa própria sequência me deixa estupefata: de agnes varda a susan sontag a machado de assis), e o resultado dessa leitura é que I WAS TODAY YEARS OLD quando aprendi que a celebrada prosa machadiana em brás cubas não é nem sequer chamada prosa machadiana, e sim forma shandiana, e que machado de assis se inspirou num livro escrito 132 anos antes de brás cubas: the life and opinions of tristram shandy, gentleman, de lawrence sterne.
sterne, em seu livro também em forma de diário, relata a vida de tristram shandy que, em oposição a brás cubas, o autor defunto que alcança seus leitores do pós-morte, nos conta em primeira pessoa sobre sua existência desde antes de nascer. e poderia esse elemento levemente fantástico ser a única relação das duas obras, mas foi sterne, com seu personagem-narrador shandy, que inaugurou essa estética meio jocosa de um romance que brinca com sua própria forma, dialoga com o leitor, quebra paradigmas de como uma narrativa evolui, usa humor e sarcasmo de maneiras inesperadas, testa a atenção do leitor e ousa na execução de seus capítulos nos quais, assim como em brás cubas, temos um leve toque de absurdismo, de piada, de experimentação com a sequenciação de páginas, texto, informação. tem capítulo de só uma frase, tem capítulo de duas páginas, tem capítulos longos que remetem ao formato mais tradicional do romance, tem de tudo bem como em brás cubas.

e longe de mim desmerecer esse grandiosíssimo livro da literatura brasileira, que eu mesma amo e defendo com um ardor patriótico que só existe em mim quando assunto é literatura, mas queria entender o que acontece nas aulas de literatura desde o ensino médio em que somos levados a acreditar que machado simplesmente inventou uma nova maneira de escrever romances, quando ele tão claramente se inspirou num autor irlandês de um século antes.
e eu, formada em letras, não estou nem apenas reclamando das aulas de literatura da escola, em que há pouco tempo e espaço para que se explore muito além do que vai ser cobrado no vestibular, mas veja bem: eu fiz a matéria de literatura brasileira de machado de assis quatro vezes. fui reprovada nas três primeiras, shame on me, mesmo insistindo em me matricular com o mesmo professor, cujas aulas eu amava, mas que claramente me odiava (ele me reprovava com 4,9, sabe, numa faculdade em que a média era 5). na quarta vez troquei de professor e fui aprovada com 10, o que só reforça a impressão prévia de que o professor anterior me odiava. AINDA ASSIM, em quatro semestres estudando machado de assis, quantas menções eu ouvi a lawrence sterne e tristam shandy? nenhuminha.

não sei se essa recusa em reconhecer um autor de língua inglesa como grande inspiração de machado de assis entra na boa-e-velha narrativa brasileira de rejeitar referências que não sejam, pois bem, brasileiras. há uma grande recusa em simplesmente aceitar que a cultura brasileira não existe num vácuo, que nós somos, sim, influenciados por literatura (e música, cinema, arte, etc) britânica, francesa, alemã e, até, norte-americana (OH THE HORROR). a verdade é que numa rápida pesquisa percebo que muitos estudiosos ingleses e norte-americanos de literatura machadiana reconhecem tristam shandy como essencial para a existência de brás cubas, sem de maneira alguma diminuir a genialidade do romance de machado de assis - pelo contrário, a forma shandiana como usada por machado é aclamada nesses textos. a perspicácia, o humor e a inteligência de machado são constantemente referenciados, mas a clara inspiração proveniente do romance de lawrence sterne não é ignorada.
e, assim, joke's on me na verdade, porque no próprio prefácio de brás cubas tá lá bem explicadinho, não por machado de assis mas pelo próprio brás cubas: "trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, brás cubas, se adotei a forma livre de um sterne, ou de um xavier de maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo". ou seja, quem mandou eu não prestar atenção em prefácios, ainda mais numa obra em que, claramente, tudo é importante, até o prefácio (que tecnicamente não é um prefácio, é já o início da história, posto que é escrito não pelo autor do romance ou por algum autor convidado, mas pelo narrador-personagem-eu-lírico). mas, assim, custava algum dos meus professores ter usado alguns minutos de uma mísera aula pra esmiuçar de leve essa referência à lawrence sterne no prefácio de brás cubas? ainda bem que a vida continua acontecendo e sempre dá pra voltar pra livros queridos e descobrir coisas novas; a literatura é mesmo essa coisa magnífica, né não?

[essa coleção de ensaios da susan sontag chamada where the stress falls - uma questão de ênfase, na tradução brasileira - é muito maravilhosa: de literatura a cinema a fotografia a viagens a teatro a escrita, todo um escopo rico e diverso de observações que me lembra muito a maneira de roland barthes de escrever. também deixarei aqui uma nota mental para reler o prefácio todo de brás cubas e também ir atrás de ler xavier de maistre (viagem ao redor do meu quarto me parece um título que combina com meu jeito-de-ser, e também soa como uma boa leitura para épocas pandêmicas, por mais que não estejamos mais isolados em quarentena); mas só depois de ler o tal tristam shandy (que por sua vez vai ter que esperar eu terminar o magnífico livro que estou lendo no momento: i who have never known men, da escritora belga jacqueline harpman, e também depois que eu terminar o ensaio da susan sontag que iniciou essa viagem e também alguns dos outros textos sobre brás cubasXtristam shandy que encontrei pela interwebs)].
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incrível demais, mel :)!
Excelente texto!