não consigo parar de pensar na lily allen
- melody erlea
- há 1 hora
- 6 min de leitura

sem querer adicionar ao ruído de muitas vozes que o algoritmo bondosamente proporcionou a todo mundo que está levemente obcecado pelo novo disco da lily allen, mas: eu estou levemente obcecada pelo novo disco da lily allen.
eu sequer lembro quando foi a última vez que participei tão ardentemente de um zeitgeist cultural (provavelmente na época do filme da barbie, mas mesmo então não foi a mesma coisa). a última vez que vibrei com o lançamento de um disco em tempo real, junto a uma comunidade virtual e invisível ao redor do mundo, foi em 2020 quando fiona apple lançou o fetch the bolt cutters.
curiosamente, o fenômeno fetch the bolt cutters me parece ter uma dinâmica similar ao que sinto agora com west end girl, da lily allen. a gente tá falando de duas mulheres que lançaram seus primeiros álbuns muito jovens, num contexto midiático e virtual completamente diferente de agora, e que demonstram um amadurecimento tão palpável, musicalmente, artisticamente e, também, como mulheres vivendo o mundo como ele é.
as duas mantém um estilo de escrita muito autêntico e reconhecível - uma letra da fiona apple só pode ter sido escrita por ela, lily allen idem - mas uma evolução de ponto de vista e perspectiva que talvez me toque tanto porque eu também passei da juventude à idade balzaquiana acompanhando esses discos. se a fiona apple do tidal entendia minhas angústias adolescentes e meu desejo ardente por amor, a fiona do fetch the bolt cutters entendia minha necessidade de afastar o gênero masculino do protagonismo das minhas experiências e encontrar perdão e empatia em tantas mulheres que, antes, eu preferia manter invisíveis - a ex-amiga, a coleguinha que fazia bullying, a ex do meu ex, entre tantas outras. fiona cresceu, e eu cresci com ela.
se a lily allen do alright still me pegava pela ironia juvenil, pela exploração espacial de uma cidade cosmopolita e sua vida noturna, pela descoberta das aventuras do início da vida adulta (amizades com gente nova, os boys, as paixonites, as responsabilidades adultas que só pareciam ser o interlúdio entre os momentos de hedonismo e diversão que eram, pra jovem mel, quando a vida realmente acontecia), a lily allen de agora me é reconhecível como a mulher adulta que, frente ao diversos revéses da vida (sejam eles românticos ou não, sejam eles um divórcio ou uma demissão, a compra de um imóvel ou a chegada de um filho, a solidão ou a eterna obrigatoriedade de ser funcional) consegue manter um espírito de juventude e de ironia, e a noção de que, sim, a vida adulta - e as pessoas que existem nela - podem ser uma grande merda, mas eu vou rir quando outra pessoa pisar na merda e escorregar (e talvez essa outra pessoa seja eu mesma, sempre, mas estaremos aí fazendo piada da nossa própria situação).
nunca que, ouvindo a lily allen de 2006, eu imaginaria que aquela jovem um dia estaria escrevendo sobre divórcio. mas, se tivesse podido imaginar, não teria sido muito diferente do west end girl: irônico, afiadíssimo, bem-humorado porém pontuado por momentos introspectivos e profundamente tocantes. eu penso no caminho do alright still pro west end girl e enxergo claramente a linha conectando essas duas versõs da lily allen, e as tentativas, no entremeio, de se encontrar, de se permitir viver a vida que todos merecemos, de procurar por amor e estabilidade e família. tipo, é óbvio que a lily allen que escreveu smile tirando sarro de um ex-namoradinho escreveria um disco inteiro tirando sobre o ex-marido.
e os paralelos vão mais longe: em everything's just wonderful, quarta faixa do alright still, ela diz o seguinte:
I wanna get a flat I know I can't afford it
It's just the bureaucrats who won't give me a mortgage
Well it's very funny cos I got your fucking money
And I'm never gonna get it just because of my bad credit
e a maravilhosa e homônima faixa de abertura do west end girl diz:
Now I'm looking at houses
With four or five floors
And you found us a brownstone
Said, "You want it? It's yours"
So we went ahead and we bought it
Found ourselves a good mortgage
Billy Cotton got sorted
All the furniture ordered
I could never afford this
You were pushing it forward
Made me feel a bit awkward
Made me feel a bit awkward
e, assim, se até uma popstar multimilionária passa de querer um apêzinho aos 20 anos a tentar comprar uma casa de família aos 40 e ainda assim tá com medo de não conseguir pagar o financiamento, o que pode se dizer de nós meros trabalhadores clt, né? e mais do que isso - o paralelismo do desejo juvenil do primeiro disco à realização adulta do último, e ainda aquela insatisfação que bate no âmago, ainda a insegurança e o medo, ainda aquela sensação de que ninguém vira realmente adulto, a gente só segue fingindo e torcendo pro mundo acreditar. a gente pode até, se der sorte financeiramente, comprar nosso cantinho, criar nossa família, mostrar pro mundo a vida madura e satisfatória que conseguimos fazer acontecer - mas isso envolve um teatro social, envolve topar interpretar um papel, envolve ignorar as red flags e engolir os sapos, envolve vestir uma fantasia que agrada ao status quo. e a lily tentou, como esse disco deixa bem claro, e agora a cortina caiu e a gente tá vendo toda a estrutura necessária para manter o cenário de uma vida meio fake.
eu poderia explorar os vários outros paralelos de letras e imagens e simbolismos que se repetem e se refletem do alright still pro west end girl, mas meu objetivo aqui não é passar horas analisando letras - mas o alright still fala de traição, de homem ruim na cama, de achar revista pornô do namorado.... e o west end girl fala de traição, de homem que não quer ir pra cama com a própria esposa, de achar um templo de pornografia e brinquedos sexuais nas coisas do marido... às vezes parece que a vida é realmente uma sequência de acontecimentos repetidos, e a única diferença entre esses acontecimentos é que nós mudamos entre um e outro.
as discussões que tenho visto na internet tem girado ao redor da pessoa física lily allen e se ela é uma "boa pessoa" ou uma "pessoa ruim", e se devemos ou não nos compadecer de seu sofrimento ou sequer dar palco para uma persona pop polêmica como ela. já eu vejo essa discussão como completamente fútil e irrelevante: não falamos sobre um poeta, mas sobre seu eu lírico. não discutimos as ações boas e ruins de pessoas que são, essencialmente, nunca completamente boas ou completamente ruins, mas a sensibilidade que faz com que algumas pessoas transformem o cotidiano em arte universal. o impacto desse disco não é porque estamos com dó de lily allen ou porque não achamos que ela mereceu ter sido tratada como foi - o impacto desse disco ocorre porque ele nos diz algo para além de lily allen e suas atribulações amorosas. é um disco que nos conta sobre nós mesmas, é um disco que reflete em letra e música sensações e pensamentos que todos nós já experienciamos, é um disco que traduz - em ironia, humor, tristeza, raiva, solidão, desespero - algo da natureza humana dos relacionamentos, algo quase indescritível sobre ser uma pessoa e estar à mercê dos acontecimentos, algo que todos sentimos mas muito poucos conseguem descrever.
tenho pensado muito no disco de divórcio do marvin gaye, here my dear, meu preferido dele, e em como, assim como lily allen, ele conseguiu transformar uma experiência pessoal intensa em um disco genial. como em west end girl, marvin gaye escreveu um confessionário de sua experiência de divórcio, com detalhes sórdidos e extremamente íntimos de conversas, chantagens e reuniões com advogados. assim como allen, gaye compôs o disco em menos de duas semanas, escrevendo as letras e assobiando as melodias no caminho do advogado para o estúdio. e, assim como allen, ele tornou a experiência de seu próprio divórcio um retrato humano do que é amar e, aos poucos, ver esse amor virar dor, ódio, frustração. convenhamos que marvin gaye era uma figura exponencialmente mais polêmica que lily allen, um cara tóxico em muitos sentidos. mas seu disco de divórcio não tem a intenção de nos deixar com pena - o que ele causa é muito mais profundo, porque deixa de ser sobre a experiência pessoal dele e vira uma história maior, uma fábula sem moral sobre ser humano, sobre amar, sobre perder e seguir procurando.
e é sobre isso, também, que é o west end girl.



