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derry girls em três tempos

  • Foto do escritor: melody erlea
    melody erlea
  • 23 de ago. de 2019
  • 5 min de leitura

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o primeiro episódio de derry girls começa com uma família irlandesa vendo no noticiário o bombardeamento de uma das pontes da cidade. a tia da família fica extremamente abalada - porque ela precisava pegar aquela ponte pra chegar ao salão de beleza.


no ônibus da escola - que pegou um desvio por causa da ponte destruída - as garotas tem seu caminho ainda mais atrasado por militares com espingardas que revistam todo o interior do veículo. erin, protagonista da série, boceja. sua amiga michelle dá uma longa bisoiada na arma de um dos soldados e diz "será que se eu falar pra ele que tem uma bomba incendiária na minha calcinha ele vem dar uma checada?" james, único menino da escola e recém mudado da distante londres (onde conflitos na irlanda não passam de história na tv), olha tudo horrorizado sem entender o que é mais louco: os soldados revistando um ônibus cheio de adolescentes ou essas irlandesas sem noção.


li numa entrevista com nicola caughlan, uma das atrizes de derry girls, que nas filmagens da segunda temporada metade da população de derry ia nas locações assistir - e ainda brigavam com algum eventual cachorro que latisse por perto.


parece louco uma série mover uma população desse jeito, mas imagina morar numa cidade minúscula que ficou mais de 20 anos nos noticiários por causa de morte, guerra, bomba, destruição, rivalidade política e violência. imagina isso ser tudo que você ouve falar sobre o lugar onde você e provavelmente todas suas gerações anteriores nasceram e cresceram.


não é a toa que a série ganhou um mural gigante na cidade: derry girls retrata um lado da irlanda tão importante quanto sua história violenta - na série a gente conhece as pessoas que fazem aquela cidade. pessoas que precisam seguir com suas dinâmicas familiares independente do caos político. pessoas que normalizam um contexto de violência pra conseguir performar sua humanidade. e ter alguém relembrando a gente que somos humanos é importante demais, ainda mais num lugar como derry pontuado por sangue e violência.


e os visus aninhos 90? socorrrrr!


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é 1994 e uma família está no cinema na cidadezinha de derry, na irlanda. o filme é de suspense e todos estão tensos com o que parece ser o grande cliffhanger da história... quando as luzes se acendem e o gerente do cinema entra na sala acompanhado de dois policiais com armas bem generosas nas mãos - ele explica que houve um alerta de segurança e o cinema deverá ser evacuado.


ao chegarem em casa, a mãe da família tem os olhos vermelhos, as mãos tensas, ela tá visivelmente desesperada. porque as filhas tão pela cidade no meio de um alerta de segurança? não, porque ela PRECISA saber como o filme acaba ou vai EXPLODIR de angústia.


numa cidade que está em conflito político desde os anos 60 (e se analisarmos bem a história da irlanda, desde o século XVII praticamente???) as dinâmicas do dia-a-dia acabam se sobrepondo à tensão dos militares e bombas por todos os lados. ainda mais quando a gente tá falando de adolescentes egocêntricas e sem noção de nada - as protagonistas da série derry girls, do netflix. a segunda temporada estreou há alguns dias e não perde a mão no humor dos trâmites familiares rotineiros em meio ao absurdo da situação política da cidade.


na escola católica onde as meninas estudam, a trilha sonora é cramberries quando a nova professora de literatura faz sua entrada triunfal. ela rasga os poemas infantis das alunas e as incentiva a viver o momento e se conhecer profundamente - uma coisa bem sociedade dos poetas mortos mas ao invés de um cara de 50 anos a professora é uma mina gata com o cabelo que eu sempre quis ter, os visus mais maravilhosos dos anos 90 e um delineador que podia ser a prova de que deus existe. tem uma pegada de michelle pfeiffer em mentes perigosas, só que uma semana depois ela se demite pra ir pruma escola com salário melhor e férias pagas.


mas e o carpe diem?, pergunta uma das alunas. carpe diem é ótimo, mas eu tô pagando minha casa e é caro o boleto, diz a professora.


porque até em cidade constantemente em estado de alerta vivendo em conflito político os boletos seguem chegando. e a professorinha pobre (porém estilosa) segue sua vida. quase igual no brasil em 2019, hein?


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as bombas, os soldados, a vida meio em estado sitiado era lugar-comum pros moradores de derry desde os anos 70, quando os conflitos chamados "the troubles" começaram. sabe o sunday bloody sunday do u2? aconteceu lá em derry, em 72, em meio a uma manifestação por direitos civis e igualdade política entre protestantes e católicos. militares assassinaram 28 pessoas que participavam do protesto, e desse dia até meados dos anos 90, a violência e os estados de alerta foram parte da rotina dessa cidadezinha e todos seus moradores. derry, oficialmente londonderry, é parte da irlanda do norte e portanto território britânico, mas tá bem na fronteira com a república da irlanda - a irlanda independente. a cidade é tão icônica no contexto político da região que em 1619 já era contornada por muros pra impedir as invasões britânicas.


em 1969 o mural "free derry corner" foi pintado. essa esquina virou símbolo de uma derry livre e com igualdade social no período de luta por direitos civis na cidade. intervenções são feitas no mural dependendo do que tá acontecendo politicamente na cidade e no país - em abril desse ano a jornalista lyra mckee, que escrevia sobre a atuação do IRA, as consequências dos conflitos políticos em derry e belfast e crimes não resolvidos da época dos troubles, foi assassinada por um membro do novo IRA. sua morte e a pichação em sua homenagem mostram que as repercussões dos anos de instabilidade e violência estão longe de acabar. o brexit também causa insegurança pois pode significar que as fronteiras entre irlanda do norte e república da irlanda, num cessar fogo já tão frágil, voltem a entrar em conflito.


em meio a essas notícias que podem abalar a auto-estima de uma comunidade, derry girls surge retratando tudo que fica escondido e esquecido nas notícias ruins: o humor sem filtro e levemente escroto dos moradores de derry, as mães que tão sempre bravas e sem paciência, a curiosidade sexual das adolescentes, e toda a incrível segurança e força que surge de um povo em eterno estado de angústia.


é mostrar que de um legado de trauma ainda sobram boas intenções e bom humor e lembrar que para além do noticiário tem gente real e vida rolando. 🖤

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