divagações sobre cher, amy e cinebiografias
- melody erlea
- 18 de nov. de 2024
- 4 min de leitura
até os meus 10 anos, mais ou menos, eu conhecia uma cher - pelos olhos da minha mãe. a cher da minha mãe era uma diva 80s de perucas elaboradas e rosto plastificado, que se resumia numa imagem, num momento, numa obra: minha mãe é uma sereia, filme que eu assisti pela primeira vez, ainda na infância, muito antes de eu conseguir entender a mensagem contida ali. com meu olhar infantil, eu me imaginava naquela família, naquela casa, através da personagem da cristina ricci, e a ideia toda me assustava um pouco (acostumada que eu era a um núcleo familiar mais tradicional, com pais casados e amorosos, avós maternos e paternos sempre presentes, e uma infância extremamente protegida dos fatos difíceis da vida).

completamente descolada daquela realidade, e também desassociada de qualquer tipo de referência religiosa, era difícil entender aquela dinâmica familiar, a relação daquela mãe com suas filhas, a própria ideia de uma mãe e uma filha adolescente tão ideologicamente combativas. a cher-sereia, um ícone pop pra minha mãe, era alheia demais às minhas experiências pra eu compreendê-la e acolhê-la.

foi por volta dos 10 anos, não muito depois de eu tentar compartilhar com minha mãe as sensações de assistir minha mãe é uma sereia mas sem realmente ter a percepção e a experiência de vida pra conseguir, que eu esbarrei sem querer numa cinebiografia da cher.
um filme para a tv, simples de tudo... que começava no início dos anos 60, uma década pela qual, aos 10 anos, eu já era obcecada, e que retratava a vida dessa mulher que era mais do que uma mulher - foi a primeira vez que entendi a expressão "uma força da natureza". porque era isso que ela era, uma força da natureza.
nesse filme eu conheci a cher - pra muito além e muito antes da cher de minha mãe é uma sereia. eu conheci uma cher que me lembrava minha vó nas escolhas de estilo, uma cher que me lembrava meu pai pelas músicas, uma cher que jovem de tudo lançou os dados da sorte do showbiz e, num mundo antigo, diferente e, de muitas maneiras, mais simples, conseguiu tirar a sorte grande.
foi nessa singela cinebiografia para a tv que eu descobri e me apaixonei pela cher - a cantora, a artista, a mulher que fincou uma carreira de décadas para sempre no imaginário cultural.
desse filme vieram meses e meses de hiperfoco obsessivo: horas e horas vasculhando a internet por fotos, por referências das roupas, por histórias, fofocas, relações, parcerias na música, na moda e no entretenimento. incontáveis dias assistindo no youtube todos os vídeos que eu conseguia achar do show da cher; eu queria mergulhar naquela pessoa, naquelas roupas, na maquiagem, no cabelo, na voz, na persona que parecia tão original, tão solta, tão independente. mergulhei na história de sonny&cher, desejei longuíssimos e lisíssimos cabelos pretos, cortei franja, passei a usar delineador; e da cher viajei pro resto da contracultura sessentista nos eua, na inglaterra e até aqui mesmo no brasil.
assistir a cinebiografia da cher mudou meu mundo, abriu as portas pra mim pra um universo de referências, artistas, escritores, músicos e movimentos culturais, para sempre alterou minha maneira de olhar pra música, pra história e pro mundo pop.
e era só um filme pra tv, simples, quase ingênuo, e, em muitos sentidos, superficial. mas era exatamente o que eu precisava: um filme que me iniciasse nessa jornada doida e maravilhosa pelo mundo da história da música pop. um filme que conseguisse me mostrar quem era a cher, sem se afogar na parte negativa de uma vida como a dela. o filme passava pelo divórcio do sonny, retratava questões como drogas&sexualidade, mostrava os altos e os baixíssimos da vida dela - mas sempre de leve, sem uma grande proposta de reflexão sobre o verdadeiro poço de sujeira que é a indústria musical, sem apontar os monstros (figurativos ou não) com os quais uma pessoa com o nível de fama de cher precisa lidar.
era um filme cujo objetivo era lembrar da cher da maneira mais doce possível - um filme que honrava sua história, sem demonizá-la nem mesmo por um segundo. era o filme que eu precisava para começar a entender a cher.

assistir a cinebiografia da amy me causou quase um déjà vu do que eu senti assistindo à da cher. embora a maioria das pessoas não acredite que o filme faz jus à lembrança de amy - e, realmente, não tem a intensidade que a gente sentia borbulhar da cantora, não traduz de verdade o fenômeno amy winehouse, o que ela era capaz de movimentar dentro da gente.
mas, para mim, esse filme é exatamente como a cinebiografia da cher que eu assisti aos 10 anos: algum dia alguma garota estará zapeando pelos canais (ou pelos streamings) e vai, sem querer, assistir a um filme sobre uma cantora que, apesar de ela conhecer, ela nunca realmente compreendeu.
algum dia, uma garota que só conhece a amy por vídeos sensacionalistas dela tropeçando trêbada na rua, beehive torto na cabeça, delineador manchado nos olhos, algum dia essa garota talvez ligue a tv e assista a esse filme. e, talvez, ela sinta pela amy o que eu senti: uma admiração tão grande mas tão grande que vai transbordar, e não vai restar nada além da necessidade de mergulhar profundamente nessa história - ir atrás dos vídeos, das fotos, das entrevistas, das parceiras, das referências... talvez seja esse filme que abra a porta de um universo infinito e mágico de música e história pra alguém.
eu prefiro assistir esse filme com os olhos da pequena melzinha de 10 anos, que teria se encantado, do que o olhar quase quarentão de uma pessoa que viveu a era amy. no fundo eu acho que esse filme não é para nós - e sim pras futuras garotas de 10 anos caminhando por referências e modas passadas tentando se encontrar. e, do mesmo jeito que a cinebiografia da cher foi o começo da minha jornada, essa cinebiografia da amy será o início da jornada de alguém.
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